Wednesday, April 15, 2009

Por enquanto... "Heil Magalhães"

Olhei o caixote de cartão com alguma desconfiança. Meses de espera tinham-me trazido, finalmente, o famoso - por uns aclamado, pela maioria apupado -Magalhães. A caixa, branca e azul, mostrava dois miúdos sorridentes, sob o slogan "Em cada criança há um descobridor". A minha filha gritava, feliz da vida, que tinha um computador só para ela, e eu rezava, baxinho, para que o computador passasse no primeiro teste: se ligasse, eu já ficava minimamente satisfeita.
Abrimos a caixa: um simples facalhão de cozinha bastou, fortalecendo a esperança de que a missão "Pôr o Magalhães em acção" ia ser tão fácil como "roubar doces a uma criança" - o que, verdade seja dita, não é nada fácil e só alguém que nunca tenha tentado "roubar doces a uma criança" é que podia ter inventado isto.
Depois disto, foi fácil. Básico mesmo. Senti-me quase tentada a acreditar que as criancinhas mais velhas até eram capazes de o fazer sozinhas: cabo de alimentação no pc e na tomada, toca a ligar o pc, instalar windows "aceito, seguinte, seguinte, seguinte" e voilá, o mighty Magalhães já bombava na minha cozinha.
Aparentemente, e só com umas quantas horinhas de teste, tudo funciona. Ainda não explorámos todos os jogos, mas, do que vi, a nossa versão - perdão, a versão da Didi - já tem os erros ortográficos corrigidos e tudo corre na perfeição.
Afinal, o computador até é resistente às quedas - segundo dizem - é verdadeiramente portátil - mini mini portátil - e custou menos que um par de sapatos. Por enquanto (e só por enquanto) eu digo "Heil Magalhães!"

Tuesday, April 14, 2009

Abril, águas mil

Ainda que as mutações climáticas nos façam usar tops de alças e havaianas no Inverno, há coisas que ainda se mantêm. Como o tal ditado que diz que em Abril, águas mil. Mil águas contra o meu carro logo pela manhã, mil carros cheios de condutores enfurecidos/cegos pela chuva que acendem e apagam piscas, que atravessam duas faixas de cada vez, que seguram cigarros encharcados do lado de fora da janela (?) e buzinam com paixão, assinalando a sua existência.

É bom saber que há coisas que não mudam.

Thursday, April 02, 2009

Tinha essa mania de contar sempre as coisas dos outros como se se tivessem passado com ele. As dores, as mortes, as alegrias, as zangas, os perdões. Ele próprio morria, vezes sem conta, nas palavras arrastadas que lhe escorriam dos lábios nos fins de tarde no alpendre. Os olhos apressavam a esconder-se sob as pálpebras, quando finos fios de lágrimas lhe chegavam ao queixo. Já tivera mil profissões, mascaradas sob o chapéu de palha meio rasgado pelo tempo. Fora contador de suspiros, guardador de segredos, construtor de constelações. Esta última, a mais difícil, provocara-lhe um coxear da perna esquerda quando uma noite, distraído, se deixara cair do enorme escadote em que se empoleirava para chegar ao céu. Não o negávamos nunca - as verdades dele não eram propriamente as nossas, mas isso não as tornava mentiras. Eram verdades que nasciam daquela hora única no dia, quando a noite se começa a desfazer em retalhos de luz e os sonhos se diluem nos sons do despertar. Não eram sonhos, porém. Eram verdade mesmo, e ele corria a casa, coxeando, para trazer o grande baú de madeira onde, durante anos, guardara os segredos dos outros, fazendo prova do que dizia.
Nós sorríamos - o que interessava a lógica e o bom senso? Quem queria saber da física, da medicina ou de qualquer outra ciência exacta, quando aquelas palavras nos embalavam os pores do sol? Deixávamo-nos ficar, estendidas sobre a madeira quente do alpendre, a trincar as maçãs roubadas à terra, e desenhávamos com as palavras novas profissões para nós: plantadoras de sonhos, pescadoras de sorrisos, lavadoras de almas. E, quando finalmente a lua surgia, ele levantava-se em silêncio e voltava a casa. Sozinho, emudecido, sem se despedir, cruzava a porta sempre aberta e desaparecia por entre a escuridão espessa que enchia o corredor e se lhe agarrava à pele. Nunca houve adeus entre nós. Nem sequer um até logo, um até já ou um até amanhã. Éramos tão livres quanto as ervas daninhas que cresciam nas traseiras da casa. Livres ao ponto de nunca dizer adeus. Tão livres quanto algum ser pode ser.