Saturday, April 19, 2008

Ma, la, ca, sa

Pensava que me tinha esquecido de como se fazia. Disparate, estava tudo lá, as instruções escondidas a um recanto da memória com o aviso "Utilizar em caso de necessidade". Era só fazer como dantes, limpar o pó que cobria as pontas dos dedos, resgatar o cabelo ao seu descontrolo no alto da cabeça e estalar os dedos, como sempre, na busca da sílaba perfeita. O ma, o la, o ca, o sa... direitinhas, enfileiradas, escorrendo gota a gota pelos lábios ainda destreinados. A voz não era a minha: era aquela, a de sempre, a das noites sem horas e dos dias sem término previsto. Era a doce melancolia quem se escapava, novamente, por entre os portões da história do meu ser. E deixei-a dançar toda a noite, até lhe doerem os pés, até lhe pesarem as pernas. Rodopiou, saltou, bailarina desengonçada em caixinha de música anciã. Se a chuva caía lá fora, ainda melhor. Ainda melhor porque o sol nem sempre tem razão e naquele dia a chuva era o compasso alterado das minhas explicações. Não sabemos porquê, mas ela sim. Ela chove sempre por e para alguém, mesmo para aqueles que ainda ou já não são. Sem guarda-chuva, sombrinha nem nauseabundos tectos artificiais para me separar do mundo. Tudo se dilui nessa água inicial, tudo se compõe e estala em sinfonia. Dos pés com raízes que não vemos (elas estão lá, inscritas nas linhas que os tatuam à nascença) à cabeça de humano artifício, funde-se a luz com a cruz, a negridão com a compreensão, e somos, enfim, filhos das nossas próprias mãos.

Wednesday, April 16, 2008

Cinderela do mundo

Vá, eu confesso: há aqui qualquer coisa que mudou. E não foi a disposição das prateleiras nem a cor da colcha na cama. Fui eu. Euzinha, que de mim não enxergo mais do que os pés e as mãos, e costumo enfrentar o espelho de sobrancelha erguida, desconfiada: "mas quem és tu que és eu?" (são trocistas os espelhos, limitam-se a responder sempre o mesmo, no mais puro silêncio, e a repetir, ad infinitum, aquilo que lhes perguntamos...).
Às vezes queremos tanto mudar que, sem nos apercebermos, ficamos cada vez mais parecidos com nós mesmos. Outras, estamos tão distraídos, que a mudança acontece e pensamos que foi o mundo que mudou. Não, fomos nós. Não foram eles que deixaram de aparecer, foste tu que deixaste de lá ir... sim e mas... Não, o Sol não mudou de posição, foste tu que aprendeste a olhá-lo do ângulo exacto em que não te fere a vista.
E eu sei lá por onde começar. Se calhar por aquela manhã de Janeiro em que a aula não acabava nunca e eu tinha horas para... Não, foi mais cedo ainda. No Verão em que os dias foram tortuosamente longos e as noites assustadoramente calmas. Sim, foi aí.
E depois aquela manhã de Janeiro (sim, a tal) em que entrei na redacção com o estômago às voltas e escrevi a minha primeira peça. Para sair? Sim, para publicar. Quando? A emoção de espreitar as bancas à espera de 500 caracteres. 500 míseros caracteres com a pujança de uma edição inteira, com a importância de uma taça olímpica, lidos e relidos à exaustão. A revista trazida debaixo do braço, como um filho que protegemos da chuva: e voltamos a ler, em voz alta, primeiro a uns, depois a outros, sempre com a mesma emoção e excitação pueril na voz que se assemelha a soluços. (ai, a nossa, a tribo dos caracteres!)
E a primeira ida, menos de 3 semanas depois, à procura de um ar profissional que se desfaz na forma como olhamos, olhos grandes, olhos de mundo, olhos de quem dá nomes que ainda não foram inventados às coisas à nossa volta, olhos de quem nunca esteve ali, de quem nunca fez aquilo, e que tem sede de cada caracter de que se preenche o espaço.
Eu viajei, eu experimentei, eu voei de helicóptero, eu conduzi uma lancha no mar da Madeira, dormi em camas fofas de hotéis com pantufas macias e robes imaculados, eu comi pratos daqui e dali, conheci caras de cá e de lá, escutei as palavras simples, as meigas, as anónimas, as famosas, as duras, as prepotentes. E escrevi. Escrevi milhares, biliões de caracteres em busca dos sentidos das coisas que (vi)vi.
E compreendi que esta sede não acaba. Não é a inexperiência que nos dá olhos grandes, olhos de mundo. É a alegria de estar onde estamos, com quem estamos, nesse momento exacto. E é essa ânsia de contar a todos, com 500, 1000, 15000 caracteres, tudo aquilo que vivemos.
É por isso que sei que mudei. Agora, sou Cinderela do mundo: o meu lugar é aqui e ali, onde quer que o pé encaixe...

Sunday, April 06, 2008

despedidas

Nunca fui boa nas despedidas. Nunca soube jogar esse ping-pong de suspiros entrecortados por frases que ficam suspensas, cadentes das suas próprias interrupções. Nunca tive jeito para abraços demorados: a alma agita-se para se libertar e o corpo adormece e deixa de me pertencer. Não sei fazer essa troca de últimos afectos, essas vénias encenadas disfarçadas de instinto. Nunca fui boa a conter emoções: lágrimas e sorrisos fundem-se no rosto, torno-me um rio que flui para além de mim, uma forma disforme sem corpo (só alma!) para agir, só sentir. No fundo, no fundo, nunca me soube despedir. Nunca soube deixar para trás, guardei sempre pedacinhos de bilhetes nos bolsos, a página do jornal de um dia qualquer a ocupar espaço na minha vida como uma ausência presente que não incomoda: só existe e pronto. Os meus adeus terminam sempre num "até um dia" que ambos sabemos que não tem lugar nos nossos calendários. Mas, ao menos assim, não me despeço nunca. É que, infelizmente, nunca fui boa nas despedidas.