Saturday, April 19, 2008
Ma, la, ca, sa
Pensava que me tinha esquecido de como se fazia. Disparate, estava tudo lá, as instruções escondidas a um recanto da memória com o aviso "Utilizar em caso de necessidade". Era só fazer como dantes, limpar o pó que cobria as pontas dos dedos, resgatar o cabelo ao seu descontrolo no alto da cabeça e estalar os dedos, como sempre, na busca da sílaba perfeita. O ma, o la, o ca, o sa... direitinhas, enfileiradas, escorrendo gota a gota pelos lábios ainda destreinados. A voz não era a minha: era aquela, a de sempre, a das noites sem horas e dos dias sem término previsto. Era a doce melancolia quem se escapava, novamente, por entre os portões da história do meu ser. E deixei-a dançar toda a noite, até lhe doerem os pés, até lhe pesarem as pernas. Rodopiou, saltou, bailarina desengonçada em caixinha de música anciã. Se a chuva caía lá fora, ainda melhor. Ainda melhor porque o sol nem sempre tem razão e naquele dia a chuva era o compasso alterado das minhas explicações. Não sabemos porquê, mas ela sim. Ela chove sempre por e para alguém, mesmo para aqueles que ainda ou já não são. Sem guarda-chuva, sombrinha nem nauseabundos tectos artificiais para me separar do mundo. Tudo se dilui nessa água inicial, tudo se compõe e estala em sinfonia. Dos pés com raízes que não vemos (elas estão lá, inscritas nas linhas que os tatuam à nascença) à cabeça de humano artifício, funde-se a luz com a cruz, a negridão com a compreensão, e somos, enfim, filhos das nossas próprias mãos.
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