É mais fácil escrever sobre personagens imaginárias que sobre nós próprios. Os seus actos nunca vão além do papel, as suas palavras não podem extravasar a tinta de que são feitas, mesmo quando ressoam dentro do leitor que se esforça por lhes descobrir o ritmo certo, o sotaque adequado, a forma como os lábios terão pronunciado aquele último som. As personagens nunca morrem: adormecem para acordar, vezes sem conta, na memória de quem as conheceu. Ressuscitam de cada vez que alguém abre a primeira página do livro e lê: "Ele não sabia ler, nem escrever, mas aprendera que as coisas tinham nomes e que os nomes eram das coisas". É por isso que a minha vida está cheia de eles e elas, os e as, aquele e aquela. Ela sabe, sente e atormenta-se. Ela vive e a sua energia está espalhada em cada letra da sua (tua? minha?) fisionomia.
Não costumo chorar com os livros. Era a melhor forma de começar, mas seria mentira.
Ela não costuma chorar com os livros. Eles choram-na a ela, deitam-lhe lágrimas grossas sobre o rosto, carregam-lhe a garganta de alguns soluços. É raro, mas quando acontece ela deixa que eles a chorem toda, de uma vez, com o ar a atropelar-se entre os lábios e olhos turvos que impedem que veja a próxima palavra. Esforça-se por voltar a ver, ler, ser. Esforça-se por compreender. Abana a cabeça e suspira. Termina num só sopro: em vez de ler, devora. Come as palavras depressa e, tal como acontece com o comum guloso, sente-se mal disposta a seguir. Há um vazio feito de imensidão dentro dela, sente-se cheia de palavras, há letras que se acotovelam e sons que se sobrepõem como garras de metal. Emoções que se esmagam (do sim e do não, do bom e do mau), um medo que consegue filtrar os sonhos e que atormenta o sono.
Quando um livro é realmente bom, ela sabe que ele viverá para sempre num cantinho do seu ser. Que há frases sublinhadas que vai querer tatuar na pele, embora nunca o venha a fazer. Que há expressões que vai querer saborear todas as manhãs e outras que por mais que tente nunca a deixarão em paz. Que há um descompasso no coração que se deve a cada palavra que decorou, a cada personagem que amou e a cada descrição que foi capaz de ver com os olhos fechados.
Ela não costuma chorar com os livros. Eu sim.
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