Wednesday, October 16, 2013

Como toda a gente

Queria dobrar mil grous. Fazer do sonho realidade. A lenda dizia que, ao dobrar o milésimo grou, o mundo lhe concederia um desejo. Dobrou cada um com o perfeccionismo de quem não ousa, sequer, um suspiro fora do lugar. Usou papel de revista, guardanapos, talões, o bilhete do cinema daquela primeira vez. No início, os dedos hesitavam, rígidos, sem ritmo, a cada dobra. Ao terceiro, ganharam folga. Ao vigésimo, dançavam. A partir daí, cada grou saía voando dos seus dedos como se tivesse vida própria, batendo asas. 
Queria dobrar mil grous. Queria saber que era capaz e queria, no fundo, mais que tudo, aquele desejo. 
E depois chegou a vida. Uma noite que pedia sono, uma manhã que era de trabalho. Deixou pouco mais de 30 grous dobrados, numa caixa de cartão. Dizia que era falta de tempo mas era mais que isso: era falta de esperança. Era o medo de chegar ao milésimo grou, vê-lo bater asas, e não ter o sonho. 
Hoje, dobra os talões na carteira, direitos, como toda a gente. 

Wednesday, October 09, 2013

"Nunca mais escreveste"

Escrevo, pai, olha para mim. Sei que te disse que, para escrever, há que haver tempo. Que escrever para pagar as contas me esgotava as palavras. Mas a verdade é que, mais que tempo, há que haver espaço, uma medida exacta dele. Um dia, tudo o que temos é uma confusão de letras e frases feitas e deixamos de ser capazes de encontrar quem somos. Queremos escrever - eu queria escrever - mas já não sabia de mim.
Tenho quase medo de voltar e perceber que, afinal, não estava pronta. Que foi só o tempo a brincar comigo, que se vão passar mais seis meses antes de conseguir voltar a pôr qualquer coisa decente sobre o ecrã, que me vou voltar a aninhar no espaço das palavras inúteis, dos clichés, que isto de crescer nos mata mais do que queremos admitir.
Mas hoje as palavras alinharam-se e vou aceitá-las. Amanhã, logo vemos.

Falamos do que queremos para a vida como se tivéssemos muito tempo. Como se não fossemos acabar nunca. Um dia, este país, aquele livro, uma língua nova, a tatuagem que ainda não tivemos coragem de fazer. Pintamos o cabelo de vermelho-Ariel ou banimos o pão da dieta. Sonhos grandes, coisas pequenas, guardadas para um dia que não marcamos no calendário.
Ninguém é tão imortal como quando sonha.

Monday, May 06, 2013

Há lugares que trago comigo como se fossem gente. Memórias de sítios onde rir foi tão fácil como respirar - se bem que respirar nem sempre é fácil. São lugares a que não volto nunca, lugares que existem apenas naquele momento exacto em que eu era aquela e o mundo era assim. Lugares que não podem mais existir a não ser aqui, dentro de mim. Lugares a que cantamos poemas, baixinho, como quem receia que partam, de repente. Lugares que espreitamos, só de vez em quando, só quando precisamos muito, para não os gastar. As memórias também se gastam, mudam-se, transformam-se: revisitadas vezes sem conta, deixam de ser memória e passam a ser sala, quarto, espaços que desarrumamos a nosso bel-prazer.
Esses lugares soam a água, ao correr rápido sobre cristal, gargalhadas cintilantes a perderem-se no espaço imenso da memória, a encherem o peito, tanto, tanto, que chega a doer. Sem poderem ser resgatadas nunca, ali apenas para nos salvarem da loucura quando o mundo parece querer deixar de girar sobre o seu eixo.
Viajar no tempo é isso. É o espreitar hesitante do que foi, voltar a sentir o cheiro da terra seca sob os pés miúdos, o alcatrão a fumegar ao longe, pegajoso, negro, o som da água que não podemos travar a correr, tão aguçado como um punhal a rasgar o ar. E voltar à sala, ao quarto, virar tudo do avesso, querer fazer da memória lugar e o lugar já não é, já não pode ser, e respirar não é tão fácil assim.

Saturday, November 17, 2012

A vida vai continuar. 


Monday, October 08, 2012

Percebes que precisas de um escritório quando tens por acessórios de secretária um cacho de bananas e um monte de molas da roupa...

Thursday, September 06, 2012

Coisas boas




Talvez um dia estas palavras ganhem asas e a gente possa pintar a lua de azul.



Saturday, June 30, 2012

Eternidade


Não foi por querer, mas morri. Sem doçura nem histerismos, assim como quem adormece sem se aperceber e, de repente, estava morto. Não escutei a música de harpas nem vi chegarem os anjos, de asas abertas e cabelos dourados. Simplesmente, morri. Que desilusão! Nem ninfas, nem estrelas, nem espetáculos cósmicos de luz, nem alguém conhecido para me estender a mão e dizer: por aqui, vem, esperei-te a vida inteira e eis que chegaste. Podia ao menos espreitar Deus, ter um vislumbre do mundo, ver a minha vida assim, a correr, um encadeado de fotografias e cheiros e sons – mas não. Limito-me a estar morto. Para mais, deixei a cama por fazer e a roupa suja espalhada pelo chão do quarto. Pobres dos que acharem o meu corpo: uma chatice ir pelo jardim, de mão dada, sonhando quimeras e de repente deparar-se com o espetáculo de um homem caído no lago, o corpo insuflado, talvez corroído já. Gostaria de lhes dizer que sigam, que não preciso de funeral e dispenso elogios fúnebres, talvez seja melhor assim, Deus não parece ter lugar para mim. Ouçam: sigam em frente. Poderá ser apenas uma partida dos vossos olhos, as pessoas não morrem em lagos bonitos junto de parques infantis, a cara a cobrir-se de nenúfares, as mãos estranhamente arqueadas como se buscassem agarrar-se a um fio de vida ainda por extinguir. Aqui, não há nada. E se for assim para toda a eternidade – que sabe-se lá quanto tempo dura, afinal, quanto tempo passou desde que morri? – que aborrecimento. Ficar assim, só com os pensamentos, destituído de movimento, sem nada que ler, uma revista do social, até, aceitava tudo. Espero que não me encontrem. Imagino as crianças horrorizadas ao assistirem ao meu corpo a ser puxado da água e as mães a correrem para lhes cobrirem os olhos com as mãos, os pesadelos que durarão por semanas e os miúdos a enfiarem-se na cama dos pais com medo do monstro que foi retirado do lago. Pois então foi assim que acabei? Um monstro? Um homem planeia a vida inteira e a vida retribui-lhe assim. Poupa, Francisco, poupa. Junta para uma casinha, junta para a família, junta para que nunca te falte nada. Mas que raio me pode faltar agora, aqui? Ah, sim, algo que ler, uma folha onde escrever, dava tudo o que tenho – perdão, o que tinha – por uma folha de papel em branco – bolas, nem tinha de estar em branco, aceitava tudo – e um pedaço de lápis. Quanto tempo terá passado? Um minuto? Um dia? Um ano? A eternidade? E ela? Ah, ela… Desculpa-me, vais odiar-me tanto. Trago no bolso o anel que tinha para ti. Que nunca o encontrem, não quero que vivas nesse sobressalto de aproveitar o segundo, essa coisa que se apodera dos vivos quando os deixamos e que os obriga a sorver o ar e bater os pés com força na terra para se certificarem de que não esquecem que ainda vivem. Quero que vivas a vida tranquila dos inocentes, a complacente ignorância, o riso fácil, até, diria, a rotina: não há nada de errado nisso, na repetição dos gestos que amamos, pôr a mesa para dois, partilhar o lavatório, lutar pelos lençóis, esconder o comando da televisão, fazer uma festa fácil sobre o cabelo enquanto se lê um livro. Sorve o dia-a-dia com a quietude de quem não tem pressa de viver. Aqui, a eternidade dura muito tempo.