Não foi por querer, mas morri. Sem doçura nem histerismos,
assim como quem adormece sem se aperceber e, de repente, estava morto. Não
escutei a música de harpas nem vi chegarem os anjos, de asas abertas e cabelos
dourados. Simplesmente, morri. Que desilusão! Nem ninfas, nem estrelas, nem
espetáculos cósmicos de luz, nem alguém conhecido para me estender a mão e
dizer: por aqui, vem, esperei-te a vida inteira e eis que chegaste. Podia ao
menos espreitar Deus, ter um vislumbre do mundo, ver a minha vida assim, a
correr, um encadeado de fotografias e cheiros e sons – mas não. Limito-me a
estar morto. Para mais, deixei a cama por fazer e a roupa suja espalhada pelo
chão do quarto. Pobres dos que acharem o meu corpo: uma chatice ir pelo jardim,
de mão dada, sonhando quimeras e de repente deparar-se com o espetáculo de um
homem caído no lago, o corpo insuflado, talvez corroído já. Gostaria de lhes
dizer que sigam, que não preciso de funeral e dispenso elogios fúnebres, talvez
seja melhor assim, Deus não parece ter lugar para mim. Ouçam: sigam em frente.
Poderá ser apenas uma partida dos vossos olhos, as pessoas não morrem em lagos
bonitos junto de parques infantis, a cara a cobrir-se de nenúfares, as mãos
estranhamente arqueadas como se buscassem agarrar-se a um fio de vida ainda por
extinguir. Aqui, não há nada. E se for assim para toda a eternidade – que sabe-se
lá quanto tempo dura, afinal, quanto tempo passou desde que morri? – que aborrecimento.
Ficar assim, só com os pensamentos, destituído de movimento, sem nada que ler,
uma revista do social, até, aceitava tudo. Espero que não me encontrem. Imagino
as crianças horrorizadas ao assistirem ao meu corpo a ser puxado da água e as
mães a correrem para lhes cobrirem os olhos com as mãos, os pesadelos que
durarão por semanas e os miúdos a enfiarem-se na cama dos pais com medo do
monstro que foi retirado do lago. Pois então foi assim que acabei? Um monstro?
Um homem planeia a vida inteira e a vida retribui-lhe assim. Poupa, Francisco,
poupa. Junta para uma casinha, junta para a família, junta para que nunca te
falte nada. Mas que raio me pode faltar agora, aqui? Ah, sim, algo que ler, uma
folha onde escrever, dava tudo o que tenho – perdão, o que tinha – por uma
folha de papel em branco – bolas, nem tinha de estar em branco, aceitava tudo –
e um pedaço de lápis. Quanto tempo terá passado? Um minuto? Um dia? Um ano? A
eternidade? E ela? Ah, ela… Desculpa-me, vais odiar-me tanto. Trago no bolso o
anel que tinha para ti. Que nunca o encontrem, não quero que vivas nesse
sobressalto de aproveitar o segundo, essa coisa que se apodera dos vivos quando
os deixamos e que os obriga a sorver o ar e bater os pés com força na terra
para se certificarem de que não esquecem que ainda vivem. Quero que vivas a
vida tranquila dos inocentes, a complacente ignorância, o riso fácil, até,
diria, a rotina: não há nada de errado nisso, na repetição dos gestos que
amamos, pôr a mesa para dois, partilhar o lavatório, lutar pelos lençóis,
esconder o comando da televisão, fazer uma festa fácil sobre o cabelo enquanto
se lê um livro. Sorve o dia-a-dia com a quietude de quem não tem pressa de viver.
Aqui, a eternidade dura muito tempo.