Thursday, February 28, 2008

o meu eterno sorrir

O meu sorriso não é prata nem ouro: é sempre a eterna inflexão de um momento de alquimia inesperada.São assim os sorrisos: estranhos à beira da estrada que se perdem de vista pelo caminho, pontos de luz que seguimos com os olhos e se extinguem entre o bater de asas de uma borboleta. Vivem do instante fugaz e a ele pertencem. Não se conhecem nunca, não se possuem nunca. Esgares oscilantes entre o contentamento e o desalento, jogos de luz e sombra que se traçam entre os cantos do rosto. E no instante em que víamos surgir um movimento familiar, ele desfaz-se no tempo, como uma página velha que se faz pó sob o toque do dedo, e tudo volta ao início. Aí reside a magia do eterno sorrir.

Monday, February 25, 2008

cantaremos

Sabes, por vezes escrevo coisas pelo simples prazer de escutar, dentro de mim, a harmonia da dança em que se envolvem, umas nas outras.
Sim, eu sei.
E sabes que, um dia, muito provavelmente, será tempo de escrever sobre coisas sérias e tristes, daquelas que fazem as pessoas ler as páginas cinzentas dos jornais.
Sim, provavelmente, é a vida.
Mas a vida de quem?
(silêncio)
A tua? A minha? A vida que temos ou a que escolhemos?
Se calhar... as duas?
Se calhar. Vou escrever. Queres cantar as palavras depois?
Cantaremos.
O que quisermos?
Até ao fim.

Saturday, February 16, 2008

dias maiores

houve dias maiores. Em que o sol nasceu mais cedo e tocou a terra batida dos caminhos onde cresceram flores exóticas nunca antes vistas. Em que o mar se envergonhou e recuou quilómetros, deixando à vista a areia molhada repleta de seres das profundezas. O céu estava parado, o vento não guiava as nuvens que se transmutavam de formas. houve quem dissesse que era o fim. Outros, poucos, acreditaram que era o início.

Friday, February 15, 2008

cansei (lenga-lenga) - vício da rima

cansei das manhãs,
do vão da escada,
das ruas de pedra,
da terra molhada,
da linha do horizonte,
de telescópios cansados,
de feridas abertas,
de olhos fechados,
de mapas escritos,
de caminhos desertos,
de sinais confusos,
de planos correctos,
das linhas da mão
do meu tornozelo
da cova no queixo,
do meu cotovelo,
das multidões apertadas,
da solidão absoluta,
dos gritos alucinados,
do silêncio à escuta,
da luz fluorescente,
do escuro sem vida,
do dia apagado,
da noite perdida,
do gigante feroz,
do anão revoltado,
da formiga contente,
do leão emproado,
da história sem fim,
do capítulo final,
da vida, da morte,
de tudo e tal.


é só vício de rima

O velho piano

O teclado era branco. Não, minto: as suas teclas estavam amareladas pelo tempo, como os sorrisos gastos dos velhos, mal preenchidos de dentes. Olhava-me com o ar descontraído de quem já não tem nada a provar, nada a mudar, de quem já escreveu a historia da sua vida, a fechou numa garrafa e atirou-a ao mar. os meus dedos eram demasiado pequenos, na altura. esticava-os com esforço para conseguir fazer os acordes perfeitos, doiam-me as articulações, metia-se-me a língua de fora como sempre o fazem as crianças quando querem conseguir coisas perfeitas.
um dia ele saiu, com toda a pompa e circunstância, pela janela do 12º andar. Estava velho, as cordas frouxas. Uma pequena quantidade de gente, que na altura me pareceu multidão, olhava-o de baixo, murmurava frases feitas, clichés. Pousei as pautas no chão e parti. Não sei se as levou o vento ou não.

as malhas das horas

às vezes as horas enrolam-se nos relógios. Tropeçam nos ponteiros e aí ficam, caídas, alguma meia rasgada "ai merda que já fiz uma malha!", a resmungar da sua má sorte.
a gente espreita, sem dar grande importância (já todos sabemos que se dermos muita importância à maioria das coisas elas ganham manias insuportáveis), vira um pouco os olhos para elas, morde o lábio de baixo à espera de ver mudar o dígito. Volta o rabugento para casa entra o novo, restabelecido, forte, decidido a alongar-se o máximo possível. Dá vontade de gritar : o tempo da educação física acabou, meu querido! Não te alongues que não vale a pena! Mas ficamos quietos, pelo sim pelo não, não và a hora levar a mal e deixar-se ficar, preguiçosa, só para chatear

Não fosse a noite cair

Andava em passos largos, não fosse a noite cair, de repente e sem aviso, e cobrir tudo de cinza. A gente nem sempre sabe quando está para chegar, empastando os nossos cabelos com nesgas de escuridão que escorrem para os olhos. Enfim, quase corria, demorando porém os pés nas pedras do chão. Tinha por elas um respeito imenso, quase religioso, calcando-as a medo, com as pontas dos pés. Dir-se-ia que saltitava, vista de trás. As índias velhas diriam que galopava, que procurava ser livre. Se lho dissessem ter-se-ia rido: "só procuro o caminho de casa, nada mais".
Ninguém em casa a esperava, na verdade. Só uma cadeira torta, uma perna mais curta, o forro rasgado. A cadeira da avó, coberta de pó (quanto tempo teria? 2 dias? 2 anos? 2 séculos?), um pó sagrado que vinha de quem lá se tinha sentado um dia. Talvez um historiador não resistisse a tocá-lo com as pontas dos dedos, levá-las à boca, beijá-lo, sentir na ponta da língua mil vidas passadas que se fundiam e confundiam ali, naquele pó. Mas era só a cadeira vazia, a cadeira da avó que era a do gato agora. A do gato surdo que ali afiava as unhas e se espantava sempre com o silêncio do tecido que se rasgava por debaixo das patas.

Tuesday, February 05, 2008

Quando foi?

Havia eu e ele. E o mundo, como pano de fundo, bandeira meia descolorida pelo sol, agastada pelas intempéries que, de vez em quando, insistem em suceder. Mas, enfim havíamos nós e a isso se resumiam os dias. Às horas que se precipitavam galopantes quando juntos, ou numa cadência de conta-gotas na ausência. Havia as estrelas, as do céu e as do mar, que espraivam os braços na areia molhada pela manhã ou se dispersavam na escuridão da noite, cada vez mais fortes, cada vez mais altas. Havia as estórias partilhadas, os segredinhos de algibeira contados a dois tempos, as palavras inúteis mas belas que se ofereciam como caixa de bombons quando não sobrava dinheiro depois do cinema. E, acima de tudo, havia nesse passado uma inocência assombrosa de menina, uma espécie de pacto com o mundo que prometia não destruir sonhos nem quebrar ilusões.
Até que um dia, sem saber bem quando (são datas que não se fixam em calendários), quebrou-se o pacto. Os olhos escureceram, alongaram-se os dias, curvaram-se os gestos. A isso obrigou o tempo, diriam os mais sábios, que aceitam o amanhã com paciência e sensatez. As meninas fazem-se mulheres, os sonhos fazem-se planos, as ilusões são esperanças e os amores são vulcões meios adormecidos. Um dia, podem despertar e destruir tudo em seu redor. Urge cumprir horários e regras, respeitar os códigos, dezenas, centenas de premissas irrevogáveis. O mundo já não é bandeira ao fundo, é palco principal cujo pano cai a qualquer momento. Quando cai, não resta senão levantá-lo de novo: doem os braços, afligem-se os dedos, partem-se unhas, às vezes. Ou deixamo-lo caído - nem sempre há tempo para o levantar - e partimos em digressão, à espera de um novo holofote mágico que nos encadeie e nos faça acreditar que ali, onde só há luz, está de facto a baleia do Pinóquio, que o engole num zumzum de mar.

Todas as meninas se fazem, mais dia menos dia, mulheres. Mas todas as mulheres guardam em si, mesmo que não o saibam, a menina que foram um dia.