Thursday, April 02, 2009

Tinha essa mania de contar sempre as coisas dos outros como se se tivessem passado com ele. As dores, as mortes, as alegrias, as zangas, os perdões. Ele próprio morria, vezes sem conta, nas palavras arrastadas que lhe escorriam dos lábios nos fins de tarde no alpendre. Os olhos apressavam a esconder-se sob as pálpebras, quando finos fios de lágrimas lhe chegavam ao queixo. Já tivera mil profissões, mascaradas sob o chapéu de palha meio rasgado pelo tempo. Fora contador de suspiros, guardador de segredos, construtor de constelações. Esta última, a mais difícil, provocara-lhe um coxear da perna esquerda quando uma noite, distraído, se deixara cair do enorme escadote em que se empoleirava para chegar ao céu. Não o negávamos nunca - as verdades dele não eram propriamente as nossas, mas isso não as tornava mentiras. Eram verdades que nasciam daquela hora única no dia, quando a noite se começa a desfazer em retalhos de luz e os sonhos se diluem nos sons do despertar. Não eram sonhos, porém. Eram verdade mesmo, e ele corria a casa, coxeando, para trazer o grande baú de madeira onde, durante anos, guardara os segredos dos outros, fazendo prova do que dizia.
Nós sorríamos - o que interessava a lógica e o bom senso? Quem queria saber da física, da medicina ou de qualquer outra ciência exacta, quando aquelas palavras nos embalavam os pores do sol? Deixávamo-nos ficar, estendidas sobre a madeira quente do alpendre, a trincar as maçãs roubadas à terra, e desenhávamos com as palavras novas profissões para nós: plantadoras de sonhos, pescadoras de sorrisos, lavadoras de almas. E, quando finalmente a lua surgia, ele levantava-se em silêncio e voltava a casa. Sozinho, emudecido, sem se despedir, cruzava a porta sempre aberta e desaparecia por entre a escuridão espessa que enchia o corredor e se lhe agarrava à pele. Nunca houve adeus entre nós. Nem sequer um até logo, um até já ou um até amanhã. Éramos tão livres quanto as ervas daninhas que cresciam nas traseiras da casa. Livres ao ponto de nunca dizer adeus. Tão livres quanto algum ser pode ser.

2 comments:

Anonymous said...

Os teus textos deixam-me maravilhada!sem dúvida sou a tua fã numero 1!:P adoro.te@ *twin

Lolly said...

menos kd me desejas a morte a meio dos jogos de mímica lolol :P fiquei traumatizada pa smp!